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quarta-feira, julho 02, 2008

Publicada em 2/7/2008


Soberania e Filosofia (final)

Roberto Romano

Qual a causa do interesse generalizado pelos escritos de Carl Schmitt? Vimos que Marcelo Ari Solon analisa, em Teoria da Soberania como problema da Norma Jurídica e da Decisão, com rigor lógico e factual, os enunciados daquele jurista sobre a soberania. A crítica mais candente elaborada por Schmitt vai ao liberalismo político e à tese da representação em Parlamentos. O princípio do Füher como fonte e garantia do direito, unido à massa popular, assume uma forma nova de ordem soberana cuja fonte é a decisão política. Os matizes determinados por Solon, com exímia hermenêutica, não deixam de evidenciar os traços autoritários ou totalitários - visto que o próprio Schmitt em entrevista a Jean Pierre Faye reclama a invenção do termo - do autor de A Ditadura. A causa da sua evidência no pensamento acadêmico e político dos últimos tempos pode ser vista, como sugere N. Bobbio, na atração amorosa entre esquerda e direita, ambas inimigas do ideário liberal.

Outra causa do retorno a Schmitt é a orfandade noética da esquerda após o colapso da URSS. Caída com o muro de Berlim a muralha dogmática da assim chamada DIAMAT (Dialética Materialista, signo bárbaro para Theodor Adorno), diante do pensamento democrático e neoliberal a velha esquerda perdeu as referências teóricas. O sistema implodido se restringia ao simulacro grosseiro da filosofia mecânica, forte até os inícios do século 19, com tinturas hegelianas. Este seria seu lado “racional”. Trata-se de uma vulgata (que banalizou as Luzes), unida ao irracionalismo romântico cuja acentuação da vontade é peculiar. Guy Planty-Bonjour (Hegel en Russie) narra os atalhos do marxismo na Rússia antes de 1917. Como o Czar proíbe a filosofia kantiana, os professores usam Schelling e outros românticos nos cursos. A ruptura com a razão clássica, o peso dado à vontade, traços do romantismo conservador, foram assimilados pelos futuros instauradores do Estado e da ideologia soviética. A exigência de um sistema, outra marca do romantismo alemão, foi corporificada nos dicionários e livros liberados pela Academia de Ciências de Moscou. No mesmo passo, filósofos e escritores liberais, ou “burgueses” (o mesmo Kant, proibido pelo Czar...) foram vetados ou sua obra reduzida a meia dúzia de slogans vazios.

A Diamat é um Frankenstein epistemológico a serviço da mais brutal vontade de poder e razão de Estado. Com tinturas sentimentais, não alheias ao culto de Lenine e de Stalin, este último o “paizinho” amoroso e previdente do povo. Com a URSS cai a Vulgata. Fica a vontade sem peias, a crença nos indivíduos que inspiram massas e dobram a espinha das burocracias. Schmitt nutre tal crença com suas teses sobre a soberania. Na esquerda desencantada não existe soberania divina, absoluta, democrática ou representativa. Ela busca a retórica que permita destruir a ordem liberal, ou neoliberal, restaurar o mundo comunitário, suposto remédio contra a sociedade e o Estado mecânicos. Donde a procura sem descanso de situações primitivas (Agambem é um dos exemplos) para explicar o desvio que levou ao mundo atual, com suas rígidas formas jurídicas. Mesmo em Lukács já era clara a preferência por Schmitt, basta ler o Assalto à Razão.

Não é esse o interesse de Solon por Schmitt. Ele examina sine ira et studio as teses do jurista. E nos deixa a deliberação. Em 1997 Axel Gutmann, Consul Geral da RFA em Porto Alegre, precisou “buscar num dicionário” referências de Carl Schmitt, “porque suas teorias estão totalmente esquecidas”. Se o representante germânico lesse as bibliotecas dedicadas ao escritor, outro seria o seu juízo. O livro de Solon ajuda a entender o que se passa num mundo onde a soberania reside na Bolsa de Valores e nas especulações via internet. Como toda soberania, também esta última é frágil: não protege os súditos mas os deixa na beira do abismo ou, como diria Hobbes, da morte. Importa reler Kelsen e Schmitt com os conceitos expostos por Solon e sua esperança de uma soberania internacional. E, passe a boutade, decidir sobre a via prudente. As relações internacionais são dominadas por finanças e canhões. O Brasil é regido por medidas provisórias. Imperativas as últimas frases do livro: supremo é o governo da lei, “princípio da democracia. E também, de qualquer ordem jurídica”.

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