Jardineiro devolve pasta com R$ 2 mil na Capital
Administradora havia esquecido cheques dentro de ônibus
De chinelo de dedos, calça de abrigo, blusão puído e um sorriso no rosto, o jardineiro Javel Gomes da Silva, 64 anos, devolveu ontem aos donos uma pasta encontrada por acaso na Capital com mais de R$ 2 mil em cheques e um talão em branco.
> Honestidade de pai para filho
> Ele faria tudo novamente
> Confiança é o que vale mais
> Bons exemplos que ficam
Em um país habituado a escândalos protagonizados por homens públicos, a repetição de boas ações como essa é interpretada por especialistas como uma demonstração de que a ética resiste aos maus exemplos como um valor popular.
Um dos mais recentes casos de honradez cidadã teve início pouco depois das 13h30min de segunda-feira. A administradora de empresas Beatriz Regina Cadaval Baptista, 44 anos, desceu de um ônibus da linha T3 nas proximidades do Parcão e deixou no banco do veículo uma pequena pasta preta com três folhas de cheque preenchidas, um talão em branco de seu pai, chaves e um recibo em que constava o endereço da família.
Ao se dar conta do esquecimento, ainda pegou um táxi e tentou seguir o ônibus, sem sucesso. Coincidentemente, no mesmo local em que ela desceu, havia ingressado Javel - filho de um português que começou a trabalhar aos sete anos de idade, acordando antes mesmo das 4h para ajudar o pai em meio ao calor de um forno de padaria.
No final da manhã de ontem, em um intervalo do trabalho como jardineiro em diversos endereços do bairro Moinhos de Vento, Javel surgiu caminhando a passos lentos na Rua General Neto. Sob o braço direito, trazia a pasta preta encontrada no dia anterior. Na cabeça, a lembrança do pai.
- Ele era muito enérgico. Dava uma ordem uma vez só e ensinou os sete filhos a fazer o que era certo. Nunca pegamos nada que não fosse nosso. Hoje, tem pai e mãe que fala a mesma coisa 10 vezes, e o filho não obedece - comparou.
Quando chegava para entregar o material no endereço indicado no recibo, por coincidência o pai de Beatriz, o aposentado Elmio Baptista, 73 anos, abria o portão do prédio para ir a uma consulta médica. Reconheceu a pasta da filha, surpreso, e agradeceu com emoção ao gesto do jardineiro que levaria mais de 60 dias de trabalho para ganhar o valor equivalente ao dos cheques preenchidos:
- Estávamos muito preocupados. Foi uma bênção que um homem como esse foi quem encontrou.
Em seguida, fez questão de ligar de seu telefone celular para a filha e colocá-la em contato com o benfeitor, pai de quatro filhas e morador de Cachoeirinha, na Região Metropolitana.
- Na hora, fiquei tão emocionada que nem consegui falar direito - contou, horas depois, a administradora.
Sem esperar nada em troca, Javel se despediu do aposentado, virou as costas e tomou o caminho de volta para o anônimo trabalho como jardineiro no Moinhos de Vento. Para especialistas como o professor de Ética e Filosofia Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Roberto Romano, o gesto de Javel demonstra que os bons exemplos estão vindo do povo, não dos eleitos para fazer leis e que acabam por descumpri-las.
- Dada a situação de aproveitamento do Estado para fins particulares dos políticos, se reitera uma série de mitos sobre a ética popular. Diz-se que a população é corrupta. Isso não tem fundamento científico. O que há nas camadas populares é um sentimento de honra muito grande, de cumprimento dos deveres - acredita Romano.
O professor universitário Benedito Tadeu César, cientista político e integrante do Laboratório de Observação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, faz questão de ressaltar: não se deve acreditar que todo cidadão é bom, e todo político, desonesto.
- Há pessoas comuns que querem levar vantagem em tudo, e políticos que não se apropriam do que não é seu - lembra.
No que depender de pessoas como Javel, sempre haverá bons exemplos para inspirar os brasileiros, sejam cidadãos anônimos ou distintos ocupantes de cargos públicos.