CORREIO POPULAR DE CAMPINAS 6/2/2008
DESCULPAS E CONTRA-ATAQUES
Roberto Romano
Prometi continuar, neste artigo, o exame do fanatismo que distorce frases e razões, para obrigar sectários religiosos ou políticos a seguir doutrinas contrárias aos procedimentos científicos. Peço desculpas ao leitor, mas não farei o anunciado. Nos últimos dias o país recebeu uma série de notícias sobre desmandos no trato com recursos públicos, os quais merecem análise.
Refiro-me ao escândalo dos cartões corporativos. Esses últimos têm como alvo facilitar serviços para obter eficácia dos funcionários estatais. Nada aí merece reparos. Se os recursos são usados para atos corretos, a cidadania deve se alegrar porque tudo resulta em benefício coletivo. Se ocorre algum erro no manuseio dos referidos cartões, ele pode ser remediado em tempo certo. Desde que exista uma prestação de contas em devida ordem, os desvios (comuns em burocracias imensas como a brasileira) devem ser conhecidos, para urgentes modificações práticas e normativas.
O não permitido, na ordem ética, é usar subterfúgios para eludir erros. Os ministros acusados de uso indevido dos cartões seguiram, na sua defesa, a linha da camuflagem e da antilogia. Antilogia é técnica retórica polivalente e consiste em voltar ao acusador uma outra carga, o que atenua o peso da acusação original. Usado fartamente pela sofística, aquele torneio discursivo foi discutido de muitos modos na filosofia moderna. Um exemplo é dado por Hegel em texto sobre o subjetivismo alérgico à razão e à ciência. “Escute, minha senhora, seus ovos estão podres”. É o que diz a compradora numa feira à pessoa que vendia ovos. “O que, replica a macróbia, meus ovos estão podres? Vejam quem fala! Os percevejos não devoraram o seu pai num atalho do campo, sua mãe não fugiu com os franceses e sua avó não morreu no hospício? Que ela compre com seu lenço barato uma blusa decorosa! Seus lenços e chapéus, sabemos muito bem como ela os consegue!” (Hegel, GWF: Quem pensa abstrato?). Antilogia é praticada pela velhota pega em erro. Ela poderia dizer que ovos são delicados e de fato alguns deles apodreceram. Daí, devolveria o dinheiro à compradora ou a ressarcia com produtos sadios. Mas sempre com um pedido de desculpa pela ocorrência involuntária.
Ela também poderia culpar os fornecedores, abrir uma longa trilha de culpados, talvez chegando ao pai Adão e à mãe Eva, o que a levaria, claro, à serpente luciferina. Neste caso, a sua boa ou má fé só poderiam ser constatadas após minuciosas perquirições dos fiscais da feira, das granjas etc. A macróbia, no entanto, exala dolo em todos os poros. Pouco importa à pessoa pública ou privada a condição de quem fala - pelo menos numa sociedade republicana e democrática - o essencial é ir até às evidências, aos fatos. Não por acaso os processos judiciais corretos operam assim: dos fatos ao direito, deste aos fatos. Se o acusador é desonesto ou veraz, importa verificar o bem fundado de sua acusação. Não é permitido anular a palavra de um ser humano, pois isto significa estabelecer diferenças ontológicas que, no final, podem levar ao genocídio. Não é só coincidência o uso, na língua nazista e leninista, de termos que retiram a dignidade humana dos adversários ou vítimas. Nos dois conjuntos doutrinários, os que devem ser aniquilados recebem qualificativos envilecedores. Os nazistas chamaram os abatidos nos campos de concentração como “ratos” e “parasitas”. Lenine usa epítetos como “insetos nocivos” para se referir aos que não pensam como ele. No panfleto intitulado Como Organizar A Emulação são enumerados os “piolhos” a eliminar: os ricos, os preguiçosos, os intelectuais histéricos etc. Todos deveriam ser tratados sem piedade pelo regime revolucionário, encarregado de fazer “a limpeza” (cistka) na Rússia.
A velha feirante tenta reduzir sua compradora à falta de dignidade para ser ouvida. Os nazistas tentaram reduzir os judeus e demais minorias ao estatuto da animalidade. Os leninistas tentaram reduzir os que resistiam aos seus planos ao estatuto de insetos a serem eliminados. O recurso, com toda a selvageria que ele implica, não funcionou. Depois dos seis milhões de mortos nos campos de concentração, os judeus mantêm sua dignidade humana, ainda hoje a custo de muitos sacrifícios. Depois do Gulag e dos milhões de mortos, sumiu da Rússia o poder bolchevista - embora não totalmente, basta ver o que Putin faz naquele País. Os pegos no uso irregular dos cartões corporativos tentam reduzir os acusadores ao plano do preconceito (é o que fez a ministra demissionária e seus assessores) e o governo anuncia sanções contra quem deu conhecimento ao público da notícia escandalosa. Esperemos que a tática bisonha termine aí. Caso contrário, logo a cidadania que paga impostos será posta em currais para ser abatida, porque suas queixas e denúncias prejudicariam o “governo como nunca teve este país”. No atual poder brasileiro ainda resta muito de integralismo e de leninismo. Toda cautela é pouca, diria Spinoza.
Roberto Romano é professor de Ética e Filosofia Política na Unicamp
Roberto Romano Moral e Ciência. A monstruosidade no sec. XVIII
Silence et Bruit. Roberto Romano
quarta-feira, fevereiro 06, 2008
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