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quarta-feira, maio 23, 2007

Correio Popular de Campinas, 23/05/2007




Publicada em 23/5/2007

Roberto Romano


Técnica, guerra, ética (1)



A Ética tem como um de seus significados a disposição corporal (diathesis), nome que também designa saúde ou doença, incluindo sentimentos como a honra e vergonha (aidós). Diathesis pode ser força ou fraqueza dos indivíduos e grupos, virtudes ou vícios. Uma postura torna-se hábito unido a gestos, uma segunda natureza. A vergonha sentida num instante, esquecida depois, é apenas paixão (pathé) e nunca disposição permanente. Ela só se torna ética se repetida ao longo do tempo. É o maior desafio político ou educacional, captar em cada pessoa ou coletivo as atitudes e consciências que indicam, neles, uma ordem correta ou péssima do caráter e da mente. Os indivíduos ou sociedades a quem não foram ensinadas posturas corretas, resistem à prática sadia. O homem, pensam vários filósofos gregos, tem essência social e deve participar da união coletiva. A ética enquanto virtude reside na consciência, disposição ou jeito de sentir e agir para ser admirado na sociedade. Em tempo longo se forma um estado permanente (hexis une-se então ao fato de ser proprietário). Quando alguém age de acordo com o correto modo ético, opera como dono de seus atos e hábitos, senhor de sua mente.

Dentre os hábitos adquiridos pela humanidade, a técnica é o mais importante: o nosso corpo resulta, em milhares de anos, de infindáveis técnicas. Ele transformou a si mesmo num complexo gerador de hábitos. Ao nos produzir como instrumentos de nós mesmos, produzimos instrumentos. É isto o que um dos maiores pesquisadores da gênese técnica, A. Leroi-Gourhan, chama de “cadeia operatória”. Para entender os nexos entre corpo e instrumento é preciso não partir da sua mera adjunção, mas de sua unidade. Esboçamos gestos motores com instrumentos disponíveis. Estes impõem formas novas aos mesmos gestos. O instrumento é a memória exteriorizada de gestos praticados pelos antepassados e que se tornaram costumeiros. O que significa “perceber” uma cadeira? Só a percebo se movo o corpo e a mente de várias maneiras em seu rumo, aplicando certa ação motriz. Perceber uma cadeira é saber sentar-se nela. Parece simplório. Mas o humano que nunca viu uma cadeira, nem viu outros humanos usando-a, não capta o seu sentido. Só percebe a razão de um instrumento quem retoma, pela treino e hábito, a cadeia operatória na qual ele se insere. A cadeia do martelo consiste nos atos de martelar, o martelo proporciona um gesto, acrescido do prego, etc. Ao se pegar um martelo, sua forma condiciona o gesto a ser feito. Se inicio uma outra cadeia operatória ou uso o martelo em sentido não habitual, sigo para produzir outro instrumento. Se queremos seguir a marcha da nossa espécie, pensa Gourhan, entendamos a evolução do corpo e do instrumento, na medida em que este entra num sistema técnico dado, e também a do gesto que une corpo e instrumento. A cadeia operatória se torna mais complexa quando maior tempo nos distancia da natureza.

“Técnica” é sinônimo, na lingua grega, de arte. A sapiência no ato de fazer permite chegar ao fruto esperado pela nossa vontade. Técnica pode gerar pintura, poesia, arquitetura, ou algo apenas utilitário. Arte e técnica transformam o meio em que são produzidas. A técnica também transforma a consciência (com os métodos de pensamento). Somos técnicos e tecnológicos, fazemos instrumentos, incluindo nosso corpo, e os pensamos. A técnica, no mito, foi presente de Prometeu para socorrer os frágeis homens. Prometeu possui a previsão anterior, o pensamento meticuloso. Este vocábulo vem de metis, astúcia. Epimeteu (o que só pensa depois do fato) é irmão estulto de Prometeu, que lhe havia permitido distribuir qualidades às criaturas. O tolo esqueceu o homem. Este, nu e sem proteção natural, logo morreria, se Prometeu não o tivesse socorrido, roubando o fogo da arte meticulosa divina, as ciências que conservam a vida. A técnica mantém a existência e nos adapta a um meio hostil. Ela nos salva da nossa impotência natural.



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