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quinta-feira, maio 31, 2007

O governador, os decretos, a autonomia.

31/05/2007 - 10h26
Após 28 dias de crise na USP, Serra altera redação de decreto e reafirma autonomia

Da redação
Em São Paulo*


Após 28 dias de uma das crises mais intensas da história recente da USP (Universidade de São Paulo), com estudantes ocupando o prédio da reitoria, além de professores e funcionários em greve, o governador José Serra mexeu num dos focos de insatisfação dos manifestantes: os decretos que eram acusados de ofender a autonomia das universidades estaduais -- USP, Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e Unesp (Universidade Estadual Paulista). Um deles teve sua redação alterada em pontos substanciais: trata-se do decreto 51.461, que criou e organizou a Secretaria de Ensino Superior. A alínea que definia como atribuição da secretaria a "ampliação das atividades de pesquisa, principalmente as operacionais, objetivando os problemas da realidade nacional", passou a ser simplesmente "ampliação das atividades de ensino, pesquisa e extensão".

A mudança parece pequena, mas estudantes, professores e funcionários viam na expressão "principalmente as operacionais" um direcionamento das pesquisas para o que chamam de interesses do mercado. Em outro ponto do decreto, o texto definia como outra função da secretaria a "busca de formas alternativas e adequadas ao atual estágio tecnológico para oferecer formação nos níveis de ensino de terceiro e quarto graus, com vista a aumentar a porcentagem de jovens que cursam a universidade".

Agora, esse trecho do documento tem nova redação: "busca de formas alternativas para oferecer formação nos níveis de ensino superior, com vista a aumentar o acesso à universidade, respeitadas a autonomia universitária e as características específicas de cada universidade".O restante do decreto declaratório de Serra cita os decretos 51.636, 51.473 e 51.660. A preocupação, na prática, foi afirmar claramente que nenhum deles fere a autonomia universitária.

O decreto de Serra publicado nesta quinta veio em resposta a um pedido dos reitores das três universidades e do presidente da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) para que ele reafirmasse a autonomia universitária. Segundo eles "têm surgido controvérsias acerca de sua interpretação", e por isso desejavam que o governador "esclareça o alcance dos referidos decretos". Os quatro solicitantes ressalvam que não viam ameaças à autonomia nos decretos originais.

Secretários de Serra já haviam respondido à mesma consulta, mas não por meio de decreto. Responderam a duas cartas dos reitores das universidades sobre a autonomia o secretário de gestão do Estado e o secretário da Fazenda. O secretário de Justiça, Luiz Antônio Marrey, que vinha negociando com os estudantes da USP a desocupação do prédio da reitoria, já afirmara que o governo poderia fazer alterações nos decretos, mas não revogá-los.

Para o secretário do Ensino Superior, José Aristodemo Pinotti, o governo não recuou. Ele afirmou em entrevista a Rádio Jovem Pan que não há mais motivos que sustentem a ocupação do prédio da reitoria da USP.Os estudantes que estão na reitoria ainda não se manifestaram sobre o assunto -- a expectativa é de que realizem uma assembléia para decidir o que fazer.

Alunos da USP, professores e funcionários marcaram para a tarde um ato de protesto em frente ao Palácio dos Bandeirantes, sede do governo. A expectativa era de que pelo menos 3.000 pessoas participem.
*Atualizada às 13h55

Comentário:

A imprensa desempenhou na chamada "crise da Usp", um papel pouco edificante. Raros veículos tiveram a precaução ética e prudencial de ouvir todos os lados envolvidos. Alguns assumiram parti pris a favor do governo, acusando os que discutiam os decretos de vagabundos, politiqueiros, etc. Alguns poucos assumiram o parti pris a favor dos que não aceitaram as determinações governamentais. É sempre o jornalismo do preto e branco, intencionalmente negador de qualquer matiz na realidade. Assusta-me ver que a lógica maniquéia, que pode ser apanágio do péssimo jornalismo, tenha se entranhado na mente de acadêmicos, cuja missão é pesar palavras, conceitos, doutrinas, ações. Em primeiro lugar, os ataques e as etiquêtas acima empregadas ("vagabundos", "baderneiros" etc, para nomear TODOS os críticos dos decretos) foram dirigidos a pessoas que não concordam com os que invadiram a reitoria da Usp ou demais dependências públicas. Pessoalmente, não sou baderneiro, nem vagabundo. E discordei desde o início dos procedimentos governamentais. Tenho pelo governador e pelos secretários o respeito devido, nada mais nada menos (quem deseja saber o que penso com este "devido" abram novamente as cenas iniciais do Rei Lear, sobretudo a fala de Cordélia, que perdeu um pedaço do reino em nome deste "devido"). Em entrevistas, artigos, etc., sempre defendi o entendimento civilizado entre poderes e universidade. Em entrevista postada neste Blog e concedida ao Jornal O Estado de São Paulo, clamo pela criação de uma Comissão que reúna representantes dos três poderes, das universidades, da sociedade civil, para estabelecer normas provisórias para a Universidade Pública de São Paulo, enquanto a Constituição Federal não é regulamentada no item "autonomia universitária". Aliás, algo assim foi proposto por mim há muito tempo, em artigo na Folha de São de São Paulo cujo título é "Uma cura para o tumor universitário".

O problema é complexo e não deve ser encaminhado sem respeito pelos que discordam desta ou daquela atitude, doutrina, ação. Os xingatórios são fascistas (leiam o livro de Klemperer, sobre a Lingua do Terceiro Reich). Quem os usa, já integra o universo fascista, que não reconhece a pluralidade de opinião. Como liberal renitente, acusado pela direita de ser de esquerda e acusado pela esquerda de ser de direita, percebo que nas várias alas não se busca solucionar problemas, mas impôr soluções.

O governador deu um passo importante no rumo democrático. Cabe aos invasores rever suas atitudes. Mas resta ainda estabelecer uma plataforma, ou pauta de análises, sem populismos e sem autoritarismos. Está em jogo muita coisa importante para São Paulo e para o país. Uma Comissão integrada pelos três poderes, universidades, juristas, representantes da vida civil, especialistas em questões universitárias e tecnológicas, pode conduzir ao diálogo construtivo tendo em vista o proveito geral.

Em todos os setores existem os oportunistas, os autoritários, os dogmáticos. Para saber a real qualidade de todos e de cada um, antes de desqualificar suas palavras e pessoas, é preciso o teste da ação concreta. Se recusam a colaboração, e querem ditar soluções, devem ser repelidos. Se abertos ao diálogo, sejam respeitados.

Fica uma sensação de melancolia diante da primitiva parte da imprensa que pensa apenas em esquema dual, e da primitiva seleção dos debatedores com o critério sectário do eles "pensam como nós" ou "discordam de nós". Enquanto o Brasil for assim, não haverá saída para ele, e para nós.

Roberto Romano


Rei Lear

Primeiro, as falas eivadas de lisonja de duas princesas, que desejam enganar o Rei para conseguir pedaços de território:

GONERIL
Sir, I love you more than words can wield the matter;
Dearer than eye-sight, space, and liberty;
Beyond what can be valued, rich or rare;
No less than life, with grace, health, beauty, honour;
As much as child e'er loved, or father found [friend];
A love that makes breath poor, and speech unable;
Beyond all manner of so much I love you.

CORDELIA
[Aside] What shall Cordelia speak?
Love, and be silent.

LEAR
Of all these bounds, even from this line to this,
With shadowy [shady] forests and with champains rich'd,
With plenteous rivers and wide-skirted meads,
We make thee lady: to thine and Albany's issue
Be this perpetual. What says our second daughter,
Our dearest Regan, wife to Cornwall? Speak.

REGAN
Sir, I am made
Of the self [selfsame] mettle as my sister,
And prize me at her worth. In my true heart
I find she names my very deed of love;
Only she comes too short: that I profess
Myself an enemy to all other joys,
Which the most precious square of sense possesses;
And find I am alone felicitate
In your dear highness' love.

CORDELIA
[Aside] Then poor Cordelia!
And yet not so; since, I am sure, my love's
More ponderous [richer] than my tongue.


Depois o Rei assim se dirige a Cordélia:

KING LEAR
To thee and thine hereditary ever
Remain this ample third of our fair kingdom,
No less in space, validity, and pleasure
Than that conferr'd [confirmed] on Goneril. Now, our joy,
Although our last and least [the last, not least in our dear love]; to whose young love
The vines of France and milk of Burgundy
Strive to be interest; what can you say to draw [win]
A third more opulent than your sisters? Speak.

E Cordélia, honesta, decorosa, respeitosa de si mesmo e de sua posição, assim fala, aparteada pelo soberano tolo, voluntarioso, tirânico e cruel:

CORDELIA
Nothing, my lord.

KING LEAR
Nothing?

CORDELIA
Nothing.

KING LEAR
Nothing will [can] come of nothing: speak again.

CORDELIA
Unhappy that I am, I cannot heave
My heart into my mouth: I love your majesty
According to my bond; no more nor less.

KING LEAR
How, how, [Go to, go to] Cordelia? mend your speech a little,
Lest it may mar your fortunes.

CORDELIA
Good my lord,
You have begot me, bred me, loved me: I
Return those duties back as are right fit,
Obey you, love you, and most honour you.
Why have my sisters husbands, if they say
They love you all? Haply, when I shall wed,
That lord whose hand must take my plight shall carry
Half my love with him, half my care and duty:
Sure, I shall never marry like my sisters,
[To love my father all].

KING LEAR
But goes thy heart with this?

CORDELIA
Ay, my good lord.

KING LEAR
So young, and so untender?

CORDELIA
So young, my lord, and true.

KING LEAR
Let it be so; thy truth, then, be thy dower:
For, by the sacred radiance of the sun,
The mysteries of Hecate, and the night;
By all the operation of the orbs
From whom we do exist, and cease to be;
Here I disclaim all my paternal care,
Propinquity and property of blood,
And as a stranger to my heart and me
Hold thee, from this, for ever. The barbarous Scythian,
Or he that makes his generation messes
To gorge his appetite, shall to my bosom
Be as well neighbour'd, pitied, and relieved,
As thou my sometime daughter.


Considero esse trecho do Rei Lear uma das mais lúcidas lições de ética e decôro. Cordélia respeita e ama seu pai, diz ela mesma, " According to my bond; no more nor less.".

Respeito o Governador Serra "according to my bond; no more nor less". Respeito os partidos políticos da mesma forma, assim como respeito os movimentos sociais, etc.

No Brasil, onde os políticos e acadêmicos encontram em Goneril e Regan o seu paradigma de comportamento, é árduo apontar para Cordélia, a que não se curva ao "Realismo heróico" da lisonja (ver, na Fenomenologia do Espirito hegeliana, um excelente tratamento deste heroísmo da servidão cortesã). Os aduladores, narizes marrons ao ar, riem dos "ingênuos" que não aceitam "negociações" e demais instrumentos para corroer carácteres.

O decôro, o respeito, a democracia, a ciência, são definidos de modo correto sempre que se busca o verdadeiro na medida exata, "no more nor less". Governantes vaidosos querem, como Lear, sempre mais. "Líderes de movimentos" que não sabem viver em coletividade civilizada, sempre querem menos.

E Cordélia (se é consolo) foi proclamada pelo próprio tirano do seguinte modo: "Let it be so; thy truth, then, be thy dower".

Os retos de mente e de alma, não podem desejar outra herança, ou dote.


PS: a melhor bibliografia sobre o tema encontra-se no monumental tratado de Plutarco : "Como distinguir o amigo do adulador". Existe tradução brasileira pela Martins Fontes, em volume cujo título é o seguinte : "De como tirar vantagens dos inimigos".

Roberto Romano

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