Powered By Blogger

quarta-feira, maio 23, 2007

O Estado de Sao Paulo, 20/05/2007.







Estado Laico

- CELSO LAFER –


Laico significa tanto o que é independente de qualquer confissão religiosa quanto o relativo ao mundo da vida civil. As acepções da palavra são um bom ponto de partida para o exame da laicidade do Estado.

Uma primeira dimensão da laicidade é de ordem filosófico-metodológica, com suas implicações para a convivência coletiva. Nesta dimensão o espírito laico, que caracteriza a modernidade, é um modo de pensar que confia o destino da esfera secular dos homens à razão crítica e ao debate e não aos impulsos da fé e às asserções de verdades reveladas. Isto não significa desconsiderar o valor e a relevância de uma fé autêntica, mas atribui à livre consciência do indivíduo a adesão, ou não, a uma religião. O modo de pensar laico está na raiz do princípio da tolerância, base da liberdade de crença e da liberdade de opinião e de pensamento.

O tema da tolerância surgiu na Europa, no plano religioso com a desagregação da unidade do cristianismo e, no plano da liberdade de opinião, com o processo de democratização das sociedades. Parte do pressuposto que, perante verdades contrapostas, inclusive as da fé, o melhor método para o trato da questão na convivência coletiva secular é a persuasão e não a imposição. Exprime confiança nas luzes da razão, alimentada pelo debate e pela crítica, cabendo acrescentar, na lição de Bobbio, que a tolerância pode ser sustentada tanto pelo critério ético do respeito pela singularidade do Outro, quanto pela avaliação epistemológica de que a verdade não é una, mas tem múltiplas faces.

O modo de pensar laico teve o seu desdobramento nas concepções do Estado. Assim, um Estado laico diferencia-se de um Estado teocrático, no âmbito do qual poder religioso e poder político se fundem. É o caso, hoje, de estados islâmicos, como o Irã. Diferencia-se também de um Estado confessional, no âmbito do qual existem vínculos jurídicos entre o Poder Político e uma Religião. Foi o caso do Brasil-Império, cuja religião era a católica, ainda que outras religiões fossem permitidas e a liberdade de opinião efetivamente assegurada. É por este motivo que incumbia ao Imperador, antes de ser proclamado, jurar manter a Religião Católica, cabendo-lhe, em contrapartida, entre as suas atribuições, nomear Bispos e prover os benefícios eclesiásticos bem como conceder ou negar beneplácitos a atos da Santa Sé (cf. Constituição de 1824, arts. 5; 102, § 2 e 14; 103).

Um Estado laico é o que estabelece a mais completa separação entre a Igreja e o Estado, vedando qualquer tipo de aliança entre ambos, como ensina Rui Barbosa, autor do decreto nº 119-A, de 7/1/1890, que promoveu, com a República, a secularização do Estado brasileiro. A secularização é uma expressão da arte da separação das esferas, fonte da liberdade e geradora da igualdade para a doutrina liberal, como aponta Michel Walzer. Daí, nesta linha, a separação dos poderes, a separação da vida pública da vida privada, a separação da Religião e do Estado. Esta separação é uma significativa manifestação da desconcentração do poder ideológico e tem um papel fundamental na limitação ao exercício do poder, por meio da tutela constitucional dos direitos humanos. Estes, por sua vez, integram as “regras do jogo” da democracia que pressupõem os direitos da minoria e o pluralismo do confronto público eqüitativo e equilibrado das opiniões.

É por este motivo que grandes temas da separação Igreja/Estado foram tratados na Declaração de Direitos da Constituição de 1891, nossa primeira Constituição Republicana. Entre eles, além da plena liberdade das confissões religiosas e a igualdade de direitos, independentemente de crença e função religiosa; o casamento civil e a administração secular dos cemitérios (por conta do matrimônio e sepultamento dos não católicos); o ensino leigo nos estabelecimentos públicos; a proibição da subvenção oficial a cultos e a vedação da relação de dependência ou aliança com Igrejas (Constituição de 1891, art. 72, § 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 28º).

A separação Igreja/Estado, reiterada nas Constituições posteriores, está consagrada no inciso I do art. 19 da Constituição de 1988 que veda ao Poder Público: – “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”. Este artigo vincula-se ao direito da liberdade de consciência e crença (art. 5, VI) e, na sua análise, explica José Afonso da Silva que a colaboração estatal não poderá ocorrer no campo religioso e deverá ser geral a fim de não discriminar entre religiões. O dispositivo constitucional está em consonância com a lição evangélica “A Cesar o que é de Cesar, a Deus o que é de Deus”, da qual flui a autonomia e a independência entre a comunidade política e a Igreja afirmada na Gaudium et spes, um dos importantes textos do Concílio Vaticano II.

O desdobramento do princípio da laicidade significa que um Estado aconfessional não pode, por obra de dependência ou aliança com qualquer Religião, sancionar juridicamente normas ético-religiosas próprias à Fé de uma confissão. Isto vale, para dar alguns exemplos, no campo da família (divórcio); nos critérios do início da vida em matéria de descriminalização do aborto e da pesquisa científica em células tronco de embriões; em matéria dos métodos de controle de natalidade; na obrigatoriedade do ensino religioso; na disciplina, numa concordata de matérias espirituais ou mistas, vale dizer, daquelas em que tanto o Estado quanto a Igreja têm normas e princípios próprios, como as acima mencionadas. Em síntese, num Estado laico, as normas religiosas das diversas confissões são conselhos dirigidos aos seus fiéis e não comandos para toda a sociedade.


Arquivo do blog