Roberto Romano Moral e Ciência. A monstruosidade no sec. XVIII
Silence et Bruit. Roberto Romano
quarta-feira, maio 23, 2007
CORRUPÇAO : A má consciência transformada em má-fé
ONTEM (NA VERDADE, HOJE, DIA 23 DE MADRUGADA) ESTIVE NO PROGRAMA "OPINIÃO NACIONAL" PARA ENTREVISTA COM ALEXANDRE MACHADO.
O TEMA, COMO HABITUAL, É A CORRUPÇÃO, NAVALHA, ETC. A CONVERSA LONGA E DESCONTRAÍDA SEGUIU PARA RUMOS JÁ BATIDOS POR MIM EM ARTIGOS, LIVROS, ENTREVISTAS.
TRATA-SE DE ANALISAR AS BASES DA CORRUPÇÃO, DEIXANDO UM POUCO O TRAÇO EPISÓDICO QUE ALIMENTA A MIDIA. A ENTREVISTA QUE SEGUE ABAIXO, DE 2005, É UMA ESPÉCIE DE ANTEVISÃO DO QUE OCORRE NO PAÍS, INCLUINDO OS TEMAS DISCUTIDOS AGORA NA TV CULTURA, ESPECIALMENTE A TESE QUE AFIRMA O SEGUINTE:
"De modo geral, o universo “físico e anímico” segue inexoravelmente para a morte. A “corrupção” é uma das expressões dessa morte. A razão e a liberdade procuram retardá-la e dar-lhe um sentido, bem como à vida. A política eticamente correta opera tendo em vista essa luta pelo sentido, para bem utilizar o tempo que nos resta como humanidade, povo, indivíduo. A política “corrupta” é a rendição à morte, ao esgarçamento que nos assola. Ela é perda de autocontrole dos que vivem na política. Eles, com a corrupção assumida, tornam-se pacientes e transmissores da morte e diminuem a vida dos seres humanos que neles confiam. "
Entrevistas
A má consciência transformada em má-fé
IHU ON-LINE WWW.UNISINOS.BR/IHU 11 SÃO LEOPOLDO, 1º DE AGOSTO DE 2005
Entrevista com Roberto Romano
IHU On-Line - Levando a conjuntura atual em consideração, em que medida a democracia está ameaçada no Brasil?
Roberto Romano – As democracias políticas e jurídicas não estão ameaçadas, pelo menos por enquanto. Entretanto, a democracia social ainda é um sonho de algumas organizações (igrejas, ONGs, etc.), sonho contraposto à triste realidade de um todo onde a minoria açambarca as riquezas, e a maioria segue sem os instrumentos e posses necessários para viver com dignidade e com segurança alimentar, espiritual, cultural, de saúde, etc. Esse defeito gera o que foi notado, desde Platão, nas democracias: a massa, desprovida de meios intelectuais para conhecer melhor os assuntos do Estado, vota segundo a imagem, obedecendo aos padrões da retórica ampliada com desmesura, como é o caso da propaganda que gera mitos e promove indivíduos ao plano divino. E temos Collor que iria acabar a inflação com um tiro e Lula que produziria dez milhões de empregos, etc. Além de técnicos de lavagem de cérebros como Duda Mendonça2, Guanaes3, etc., a ideologia da esquerda ajuda muito na gênese dos mitos políticos. A “blindagem” da figura de Lula entra na má consciência da classe média, inclusive universitária, que se sente culpada pelos bens culturais à sua disposição, o que lhe dá uma parcela (cada vez menor) dos bens materiais. Em muitos casos, sobretudo na classe média que sobe na vida por meio da política, a má consciência se transforma em má fé. Para salvar o mito e as próprias certezas, os que vivem de ideologia e se recusam a pensar o que é efetivo, investem contra os fatos. Assim, mesmo depois de o governo Lula ter optado pela política econômica mais conservadora, arrancando recursos da saúde, da educação, da segurança, semelhante esquerda ainda fala em “golpe” contra o presidente que estaria “mudando o Brasil”. Mesmo quando a evidência solar é de perfeito alinhamento com o FMI, fala em “governo que luta pela soberania nacional e contra o imperialismo”. Os slogans adquirem o estatuto de fórmulas de magia e de encantamento para exorcizar os fatos que os desmentem. É má fé em estado puro.
IHU On-Line - O exemplo do impeachment de Collor deixou marcas profundas na política brasileira. Até que ponto é possível comparar o que houve no governo do presidente deposto e o que hoje está acontecendo com o governo de Lula e o PT?
Roberto Romano – Os traços gerais são semelhantes ou idênticos. É sempre o drama de um presidente eleito por milhões de votos que encontra diante de si um Congresso no qual não possui maioria confortável para aprovar seus projetos. Tal realidade dramática acompanha a República brasileira e já causou a queda de presidentes com a incidência de suicídio, renúncia, golpes. No caso de Collor, o Partido da Reconstrução Nacional (PRN) era um partido sem nenhuma significação orgânica e nacional. O presidente era muito mais fraco do que Lula. O PT, embora dividido, ainda é uma agremiação com poder de fogo. Claro que as revelações e descobertas das CPIs, vindas quase todas da imprensa, podem levar o PT ao estraçalhamento. A oposição começa a abandonar a sua deliberada “blindagem” do Presidente devido a erros táticos do próprio PT. Veja-se o caso de Arthur Virgilio. Ele era um dos maiores defensores da proteção ao Presidente, tendo em vista a “governabilidade”, mas o PT insistiu na tática de se defender atacando. E insinuou, por meio de um seu deputado, que Virgilio estaria em situação irregular, no item financiamento de campanha eleitoral. A ousadia e arrogância do deputado petista encostaram o senador do PSDB na parede. E assistimos ao espetáculo de um opositor afirmando, na tribuna do Senado, que o Presidente ou é idiota ou corrupto. Sempre na tática desastrosa de defender atacando, o PT, agora na pessoa do senador Mercadante, diz que a elevação de tom de Virgilio devese à pesquisa de opinião que confirma a popularidade do Presidente, o sucesso da economia, as bem sucedidas relações internacionais. Essa retórica tortuosa foge do que está em debate. No caso, trata-se de um senador oposicionista que foi conduzido, pelo ataque imprudente do PT, à defesa de sua honorabilidade. Querendo salvar o PT acima de tudo, os petistas nãoenxergam limites. Assim, eles agiram durante o testemunho da ex-secretária de Valério, de modo truculento, quase policial. E o País todo se envergonhou quando, também de forma tortuosa, insinuaram relações amorosas entre a depoente e o suspeito. Os petistas esqueceram que a honra e o respeito à imagem não é monopólio dos parlamentares, mas pertence igualmente aos cidadãos honestos. E a secretária foi agredida em sua honra para salvar o partido. Atacar, com insinuações, a honra de uma pessoa do sexo feminino, num país machista e patriarcalista, é pouco coerente com as noções supostamente assumidas pelo PT no plano social. Foi necessária a intervenção de uma juíza e deputada federal, a Dra. Denise Frossard, para que um mínino de respeito pela depoente voltasse à sala da CPI. Como professor de ética, fiquei profundamente embaraçado e com vergonha do que fizeram os congressistas do PT. Nada disso seria necessário. É erro ético atacar a honra alheia para garantir a própria reputação.
IHU On-Line – O Brasil tem uma história de corrupção política. A que atribui a origem de tal comportamento na condução da questão pública em nosso país?
Roberto Romano – Calma com o andor, que o Santo é de biscuit! Se existisse um campeonato mundial de políticos corruptos, o Brasil não seria vencedor! Na Itália, na França, na Alemanha, na Rússia (e também na extinta URSS), no Japão, nos EUA, a corrupção é imensa. Se lembrarmos de certos países, como a Indonésia, os nossos políticos são reduzidos ao estatuto de freiras piedosas e austeras. É muito ruim, em termos éticos, depreciar para além do efetivo a vida nacional. Quanto às causas desses males no Brasil, a professora Maria Sylvia Carvalho Franco, em Homens Livres na Ordem Escravocrata 4, clássico sobre a gênese do Estado e da sociedade brasileiros, indica vários caminhos hermenêuticos. No capítulo III daquela obra (O homem comum, a administração e o Estado), ela mostra a gênese da “ética” que norteia os nossos costumes políticos. A professora foi convidada pela Unisinos e estará na Universidade no final de 2005, para comentar o seu livro 5. Eu diria, todavia, o seguinte, do que entendi de sua demonstração: o poder central, desde o início do Brasil independente, precisou arcar com despesas para manter um território imenso. Assim, ele tira impostos dos municípios, que, na sua maioria, estão distantes, espacialmente, do centro, o Rio de Janeiro. Os impostos seguem para os ministérios econômicos e depois retornam aos municípios, “emagrecidos”. Como as maiores despesas do orçamento e das políticas públicas são as locais, os municípios ficam condenados à permanente miséria ou quase inadimplência. Em muitos municípios, os “homens bons”, os fazendeiros ricos, tiram dinheiro de seu bolso para fazer obras (estradas, escolas, etc.). Forma-se a lógica da indistinção entre o dinheiro público, que está no cofre do município, e o privado, nos bolsos dos vereadores e prefeitos. Com o tempo, claro, os últimos deixam de colocar seu dinheiro nos cofres públicos, mas sentem-se autorizados a pegar recursos do município para suas campanhas, etc. Outro ponto: com a distância entre municípios e poder central, para conseguir obter pelo menos parcela dos impostos, foram organizadas instituições que servissem como intermediárias. As oligarquias regionais cumprem esse papel. Os deputados e senadores ligados às oligarquias negociam seu apoio ao poder central em troca de recursos para suas regiões. Até hoje, essa prática é sancionada positivamente pelos eleitores. Para eles, bom deputado federal ou senador é o que traz obras para a região. Não se pergunta, entre os eleitores que se julgam “puros” e “enojados pela política”, sobre o preço dessas obras, ou seja, a corrupção do “é dando que se recebe”. A análise da Dra. Carvalho Franco é mais minuciosa e mais sofisticada. Creio, contudo, que o essencial foi resumido por mim aqui. Penso que tentar entender a gênese e a prática da corrupção por esta via ajuda mais do que atacar subjetividades ou arengar sobre moralidades abstratas.
IHU On-Line - A corrupção gera e aprofunda uma postura de revolta e negação da política entre os cidadãos. Seria ela um elemento niilista dentro da sociedade? Como superar esse desencanto do povo na participação e na construção de seu futuro?
Roberto Romano – Em situações de niilismo fabricado é preciso recusar a má consciência e a má fé moralista. O farisaísmo que proclama que apenas “a nossa gente” é pura, causa desastres. Não esqueçamos que a tese de que “eleições”, “partidos políticos”, etc. são corruptos tem origem na contra-revolução romântica do século XIX, na qual o positivismo comteano 6 é relevante. Para o positivismo, a prática da democracia eleitoral corresponde à idade metafísica, a ser substituída pelo comando dos intelectuais e industriais. Como não tem mais razão de ser, as eleições que perduram, trazem, necessariamente, a corrupção dos costumes. No Brasil, a propaganda positivista contra a democracia eleitoral foi eficaz, fazendo com que se produzisse a imagem da política como corrupta essencialmente. O resultado dessa calúnia ao voto-cidadão é a tese da ditadura. E este fantasma, que move desejos inclusive das massas, o desejo da ditadura, é a grande ameaça. Vivemos a maior parte do século XX sob ditaduras e, nelas, intelectuais “competentes” decidiram pelo eleitorado. O desastre, inclusive econômico, deveria prevenir análises superficiais e slogans contra a democracia.
IHU On-Line - O filósofo Emmanuel Kant afirmava que o agir humano é pautado pela boa-vontade, fundamento da liberdade do homem, que é livre porque cumpre seu dever. Em Thomas Hobbes, "o homem é lobo do homem", quando se vive uma guerra de todos contra todos. Através de quais prismas o senhor explica o comportamento corrupto na política?
Roberto Romano – Procurei entender essas aporias e as diferenças entre Hobbes7 Também escreveu sobre elas Kant 8 num texto recente que integra a edição do Projeto de Paz Perpétua publicada pelo Dr. J. Guinsburg na Editora Perspectiva 9 De modo geral, o universo “físico e anímico” segue inexoravelmente para a morte. A “corrupção” é uma das expressões dessa morte. A razão e a liberdade procuram retardá-la e dar-lhe um sentido, bem como à vida. A política eticamente correta opera tendo em vista essa luta pelo sentido, para bem utilizar o tempo que nos resta como humanidade, povo, indivíduo. A política “corrupta” é a rendição à morte, ao esgarçamento que nos assola. Ela é perda de autocontrole dos que vivem na política. Eles, com a corrupção assumida, tornam-se pacientes e transmissores da morte e diminuem a vida dos seres humanos que neles confiam.
Jamais será produzido um Estado que possa impedir a marcha da morte universal. Entretanto, enquanto vivermos é preciso que o Estado nos permita enfrentar e vencer (mesmo que tenhamos plena consciência de que esta vitória é sempre limitada) os sinais da morte espiritual, produzindo meios de educação da inteligência e da fé, da morte biológica, com a ciência e a medicina, da morte civil com a segurança da polícia e do exército. O Estado, ele próprio, é um meio para preservar o quanto possível a vida que está em nós.
Notas
1 Roberto Romano da Silva, professor na Universidade Estadual de Campinas, contribui, com suas idéias, com o debate que o IHU On-Line propõe na presente edição. Ao conceder a entrevista que segue, por e-mail, o professor afirma que é necessário ajudar os leitores e as leitoras na tarefa quase impossível de entender o que se passa no Brasil de hoje. Roberto Romano cursou o doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales, EHESS, França. É pós-doutor e livre docente pela Unicamp. Escreveu os livros Igreja contra Estado. Crítica ao populismo católico. São Paulo: Kairós, 1979; Silêncio e Ruído. A sátira em Denis Diderot. Campinas: Ed. Unicamp, 1997; Identidade Social e Construção do Conhecimento. Porto Alegre: PMPA; Conservadorismo Romântico. 2. ed. São Paulo: Ed. UNESP, 1997. Caldeirão de Medéia. São Paulo: Perspectiva, 2001; Moral e Ciência. A monstruosidade no século XVIII. São Paulo: Senac Ed., 2002; e O Desafio do Islã. São Paulo: Perspectiva, 2004. De Roberto Romano já publicamos duas entrevistas, uma na 39ª edição de IHU On-Line, de 21 de outubro de 2002, e outra na 130ª edição, de 28 de fevereiro de 2005.
2 Duda Mendonça, publicitário, é o atual responsável pelo marketing político do governo do PT e foi o responsável pela campanha presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002. (Nota do IHU On-Line)
3 Nizan Guanaes, publicitário, ganhou alguns dos mais cobiçados prêmios de publicidade, mas a notoriedade veio mesmo com a política, graças à sua
participação no marketing da eleição e da reeleição de Fernando Henrique Cardoso. (Nota do IHU On-Line)
4 FRANCO. Maria Sylvia Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 4. ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997. (Nota do IHU On- Line)
5 O entrevistado está se referindo ao III Ciclo de Estudos sobre o Brasil, do dia 24 de novembro de 2005, promovido pelo IHU, em que a Profa. Dra. Maria Sylvia de Carvalho Franco, da USP e da Unicamp, apresentará o livro de sua autoria: Homens livres na ordem escravocrata. O evento acontecerá das 20h às 22h, na sala 1G119. (Nota do IHU On-Line)
6 Augusto Comte (1798-1857): filósofo e pensador social francês. Fundou a escola filosófica conhecida como positivismo e criou um conceito de ciência
social a que deu o nome de sociologia. O positivismo comteano afirma que a verdade da ciência é indiscutível e demonstrável universalmente. (Nota do IHU On-Line).
7 Thomas Hobbes (1588 – 1679), filósofo inglês, Sua obra mais famosa, Leviatã (1651), trata de teoria política. Neste livro, Hobbes nega que o homem seja um ser naturalmente social. Afirma, ao contrário, que os homens são impulsionados apenas por considerações egoístas. Hobbes estudou na Universidade de Oxford. Ele foi secretário de Sir Francis Bacon.
(Nota do IHU On-Line)
8 Emmanuel Kant (1724 – 1804), filósofo alemão, em geral considerado o pensador mais influente dos tempos modernos. O problema central de sua principal obra, Crítica da razão pura (1781), é a natureza e os limites do conhecimento humano. Além desse livro, Kant escreveu sobre estética e ética. No campo da ética, tentou demonstrar que cumprir o próprio dever é muito mais importante do que ser feliz ou tornar os outros felizes e que, mesmo supondo-se que os cientistas possam prever o que iremos fazer, estas previsões não entram em conflito com o nosso uso do livre-arbítrio. Logo, as
previsões dos cientistas não têm qualquer relação com nossa obrigação de viver de forma moral. A principal obra de Kant sobre ética é a Crítica da razão prática (1788). Foi professor na Universidade de Königsberg. Seu trabalho marcou época, porque estabeleceu as principais diretrizes para o desenvolvimento da filosofia contemporânea. A Kant IHU On-Line dedicou sua 93ª edição, de 22 de março de 2004. Também sobre Kant é o número 2 do Cadernos IHU em formação, de 2005. (Nota do IHU On-Line)
9 Cf. Guinsburg, J. (org.) A Paz Perpétua. Um Projeto para hoje. (São Paulo: Perspectiva, 2004). Texto de Kant e comentários de Jacques Derrida, Anatol Rosenfeld, Roberto Romano. (Nota do entrevistado)
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