Powered By Blogger

quarta-feira, maio 23, 2007

E por falar em laicidade estatal, ai vai um artigo de 1994, contra a hierocracia brasilica....

FOLHA DE SÃO PAULO, 22/04/94

Autor: ROBERTO ROMANO
Editoria: PAINEL Página: 1-3
Edição: Nacional APR 22, 1994
Seção: TENDÊNCIAS/DEBATES


Hierocracia brasileira e morte da República


ROBERTO ROMANO

O pluralismo e a igualdade são conquistas da moderna democracia. "Como viver em paz numa república?" Esta pergunta hobbesiana suscita, até hoje, muitas reflexões. Duas delas urgem em nosso palco jurídico. A primeira afirma que um governo capaz de assegurar a comunhão social não pode curvar-se diante de injunções particulares. Igrejas e seitas incluem-se nesse item. A segunda assinala: o mando, numa comunidade, precisa ser constante, reproduzindo instituições civis e partidos políticos organizados, sem apegos aos carismas pessoais.

O Brasil de hoje exibe franca ruptura com esses axiomas, muito próprios do regime político com fundamento no direito e na justiça. Enquanto o Legislativo nacional volta-se para os interesses corporativos, sem obedecer a universalidade cidadã, o Executivo devora seus titulares, frustrando as promessas de eficácia do sistema presidencialista. O fato é que a entidade laica, estatal, perdeu toda "dignitas" e qualquer "auctoritas" entre nós.

Os homens, já dizia Platão, obedecem uns aos outros por medo ou esperança. Ninguém teme os legisladores brasileiros, ninguém respeita os executivos. Por razões claras, mas cujas causas são complexas, o Estado só é temível, em nossa terra, porque ainda possui o poder de coação física. Caso oposto, já teria sido pulverizado pela cidadania.
Quando o poder laico perde autoridade, sua força de aglutinação universal atenua-se ao máximo. Esta é a hora propícia às igrejas, as quais, pela sua essência, desejam e precisam impor-se ao maior número de corpos e almas, idealmente, a todos.

O papado, dizia Hobbes, é o fantasma que aparece sobre a lápide do império romano. A CNBB, diríamos nós, é uma assombração que surge sobre a tumba do Estado brasileiro. Na atual Assembléia de Itaici, nas inúmeras "conversas" com candidatos à Presidência da República, nas chantagens operadas pelos bispos contra os partidos políticos, pressionando-os para adaptar programas aos dogmas, no plano de ação da Igreja (preparado por intelectuais leigos), na administração cotidiana, vemos se reforçar o domínio teológico-político.

O último sinal desta inquietante ditadura católica em andamento é o ensino religioso. Este, diga-se, teve a prefeitura petista de São Paulo enquanto pioneira. Agora, o governo Fleury cede aos cantos de sereia eleitoreiros (mais uma vez) e instala um "serviço" (pago pelos contribuintes) catequético cuja responsabilidade deveria correr por conta exclusiva dos fiéis católicos.

No ensino religioso imposto pela prefeitura petista, eram privilegiados os setores protestantes tradicionais (metodista, presbiteriano, e outros) contra a maioria das religiões praticadas pela população (da umbanda ao espiritismo kardecista, deste às variações budistas, pentecostais etc.). A grande premiada, no entanto, foi a Igreja Católica. Deste modo, na capital, pagamos para que seja feito proselitismo nas escolas, atentando contra a base democrática, com uma privatização do Estado. Agora, em São Paulo inteiro temos o mesmo ocorrendo, sem que ninguém proteste. Eleições produzem milagres que não multiplicam só peixes: ampliam sacristias.

É certo que a educação religiosa foi colocada na Constituição, bem como vários outros itens que atentam contra a igualdade. Poucos sabem o quanto foi necessário, em termos de pressões e de lobby católico, para ferretear a Carta Magna com este dispositivo contrário à democracia. Uma CPI do ensino religioso seria muito bem-vinda, prestando relevantes serviços à transparência na ordem política nacional.

O básico é que, constatada a fraqueza do Estado, a Igreja retoma seu velho discurso de mãe e mestra, querendo dirigir a "res publica" a partir da economia, sociedade, costumes, baseada em suas doutrinas particulares. Nós votamos nos deputados, senadores, presidentes. Podemos promover causas públicas para afastar magistrados civis e militares. Mas ninguém, na sociedade laica, elege bispos e estes, por sua vez, não conhecem nem reconhecem nenhuma forma jurídica de coação para sua atividade. Eles não respondem por ela diante de nenhum mortal.

Agora digam: quando a hierarquia apoiou o golpe militar de 1964 (realizando inclusive um golpe interno, na CNBB, afastando prelados democratas), ou quando ela deu pleno aval ao AI-5, ou quando os cardeais jantavam alegremente com os ditadores de plantão, quem conseguiu mudar sua atitude?

Sempre que essas lembranças ocorrem num debate, alguém refere-se aos mártires que, na base eclesiástica, lutaram contra o regime ditatorial. Sim: enquanto alguns leigos católicos eram mortos (a maioria dos torturados e desaparecidos era, no mínimo, agnóstica), a hierarquia negociava com os poderes de Brasília. Bispos unidos de fato às causas populares eram pressionados pelos seus próprios colegas, obedientes à Nunciatura Apostólica.Hoje, então, é mentira falar-se em compromisso com setores progressistas. Os últimos bastiões desta ala católica ou gemem sob um degradante silêncio obsequioso, ou já se desligaram de suas funções eclesiásticas, ou fingem obediência, sob reserva, a João Paulo 2º, cujo pontificado jogou a Igreja no conservadorismo estrito.

Os católicos esquecem um fato importante: sempre que a Igreja se imiscui muito diretamente no mando civil, ela se divide e se perde. No fim, ela torna-se escrava de seu suposto servidor. Basta que este recupere força e legitimidade junto à população.

É o caso de se dizer aos bispos e leigos poderosos: "Devagar com a andor, porque o santo (no caso, a liberdade de todos, inclusive católicos) é de biscuit". Mais uma vez, semelhante abuso –o "Diktat" da hierarquia aos governantes laicos– desestabiliza ainda mais a República, em proveito de ninguém. Quanto ao problema do carisma e do cesarismo, outra forma de morte para a democracia, é assunto para outra ocasião. Agora, é preciso dizer, contra a tese do mando religioso "superior" ao civil: "Papa (non) est iudex ordinarius omnium". Os canonistas entendem.

ROBERTO ROMANO, 48, filósofo, é professor titular de filosofia política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Arquivo do blog