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quarta-feira, maio 23, 2007

Ficamos mais velhos e cansados, mas as Excelencias continuam sua faina, bem conhecida dos brasileiros....

Folha de São Paulo, 14/01/94

Editoria: PAINEL Página: 1-3
Edição: Nacional JAN 14, 1994
Seção: TENDÊNCIAS/DEBATES

Réquiem para uma legislatura

ROBERTO ROMANO

Recentemente, o ministro do Supremo Tribunal Federal Sepúlveda Pertence argumentou que a revisão constitucional estava sendo feita "por esse melancólico Congresso, na antevéspera de seu mandato". O juízo foi seguido pelo também ministro Carlos Velloso, para quem "a revisão é inoportuna e impatriótica". A liminar só foi recusada devido à gravidade do momento político.

No dia seguinte, a pesquisa Datafolha anunciava que 43% dos brasileiros considera descartável o Congresso Nacional. No mesmo ato, ficamos conscientes da luta entre os poderes da República, sobretudo com as tentativas do Parlamento para controlar o Judiciário.

Esses fatos mostram que muitos legisladores querem impor uma visão corporativa em benefício unilateral do Congresso, negando os direitos dos outros poderes e dos cidadãos. Isso aumenta a falta de crédito que estigmatiza o instituto parlamentar. Tal situação deve-se ao próprio Legislativo. Após a ditadura, os representantes foram bem vistos pela opinião pública, que neles enxergava um meio para se estabelecer no Brasil a convivência civilizada, respeitosa dos direitos individuais.

Breve, os atos e palavras dos legisladores macularam a esperança nacional. Os escândalos praticados por eles avolumaram-se no próprio recinto do Parlamento. Ademais, os parlamentares não defenderam os cidadãos dos atos ilegais oriundos do Executivo. O confisco perpetrado por Collor teve a bênção dos deputados e senadores. Atitude idêntica de conivente silêncio foi adotada por ocasião das numerosas medidas provisórias, acolhidas pelo Congresso.

A imunidade parlamentar foi usada enquanto ardil corporativo, impedindo a punição de parlamentares que delinquiram. Pedida uma CPI para apurar os desmandos no Orçamento Nacional, esta foi arquivada. Ibsen Pinheiro, o então presidente da Câmara, disse em recente depoimento à enfim instalada CPI que a proposta, na época, não seguiu adiante "por falta de gosto" dos parlamentares por semelhantes tarefas. Tal paladar é incompatível com o Estado de Direito.

Todos os brasileiros conhecem o que se passa na atual CPI do Orçamento. Surgem comprovações de práticas cuja torpeza brada aos céus. No mesmo ínterim, deputados venderam seu mandato, em troca de dinheiro sujo. Foram cassados, graças ao pudor de seus pares éticos e depois de pressões civis. Este é o Congresso "melancólico", na expressão de Sepúlveda Pertence. O jurista aplicou, com perfeito conhecimento de causa, aos nossos representantes atuais, o diagnóstico conhecido desde a Grécia clássica. De fato, na tradição cultural do Ocidente, a existência de governantes despreparados para o mando se identifica com a melancolia. Os atrabiliários, segundo Aristóteles, isolam-se, tornam-se raivosos.

O que os torna perigosos para a vida pública é o seu isolamento. No século 17, disse Jourdain Guibelet: "Quando os melancólicos deixam-se dominar pelo medo que obnubila a alma, eles fogem dos outros seres humanos". Separado dos demais, o homem acometido pela doença em questão assume o "perigoso maquiavelismo, inventando estratagemas, sofismas, astúcias" (Lawrence Babb, "Malincolia e Scienza dal Medioevo al Rinascimento"). Inimigo de seus compatriotas, o governante melancólico deseja apenas impor sua opinião. Ele considera hostil todo aquele que discorda de suas atitudes. O melancólico é triste e inútil, quando não se torna perigoso pela ira.

É bem fundada, pois, a tese do ministro Pertence sobre nosso Parlamento. Devido aos desmandos cometidos em seu âmbito, o Congresso isolou-se dos representados. Domina, nas suas fileiras, o medo da rejeição. Não possuindo a fé dos eleitores, a corporação legislativa busca sobreviver a qualquer preço. Se o Executivo lhe oferece barreiras, o Congresso pressiona, barganhando quando deveria votar normas urgentes para o país. Se os obstáculos provém do Judiciário, os parlamentares chantageiam com o "controle externo" dos tribunais, sem maiores estudos. Se os óbices são gerados por cidadãos livres, que verberam seus desmandos, os dirigentes parlamentares, e representantes individualmente, tentam incriminar a crítica legítima, tentando reduzir os tribunais ao simples papel de censores.

O Parlamento transformou-se num corpo alheio aos habitantes do Brasil. Não espanta que a opinião pública julgue descartável a sua existência. Quando à arrogância soma-se a malversação dos recursos públicos, deve-se temer pelo futuro da democracia. Diz Norberto Bobbio: "Palácio e praça são duas expressões polêmicas para designar, respectivamente, os governantes e os governados, sobretudo sua incompreensão recíproca, estranheza e rivalidade (...) Vista do palácio, a praça é o lugar da liberdade licensiosa; visto da praça, o palácio é o lugar do arbítrio do poder. Se cai um, o outro está destinado a cair também".

Caso a CPI do Orçamento não se desdobre em outras, transformando a face do Congresso, o suicídio, outra tendência melancólica, estará sendo cometido pelo palácio. Os que procuram deter as investigações, punindo meia dúzia de vítimas propiciatórias, estarão abrindo as avenidas de Brasília para as massas, perplexas pela inflação econômica e pela hiperinflação da impunidade. Atrás das multidões, os tanques. Bílis negra é o que não falta. Ela avoluma-se cada vez mais, anunciando o dia da ira. Deus queira que esta legislatura descanse em paz e, das urnas, surja uma outra, vigorosa, para nos defender das baionetas.

ROBERTO ROMANO, 47, filósofo, é professor titular de filosofia política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

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