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domingo, maio 20, 2007

No Caderno Mais, da Folha 20/05/2007

+ Cultura

Recém-consumidos
O pensador Russell Jacoby ataca o novo livro do cientista político Benjamin Barber, que esmiúça as formas de sedução e resistência no capitalismo

RUSSELL JACOBY

Encorajo todos vocês a fazerem mais compras, aconselhou o presidente George W. Bush em entrevista recente.


Comprar e gastar gasolina -essa é a idéia. Sair atrás de uma televisão de plasma e incentivar a produção e o emprego.
Os recém-empregados vão ao shopping escolher mais produtos e ampliar o círculo de produção e emprego.
Pelo menos Wall Street está acatando as ordens. Seus bônus de milhões de dólares no final do ano causaram uma enxurrada de compras. Jovens analistas de fundos de investimentos estavam "abocanhando" apartamentos "para novatos" de US$ 2 milhões a US$ 3 milhões. As coisas estavam mais difíceis em Connecticut, onde um revendedor de carros lamentou uma lista de espera de 50 pessoas para comprar ferraris de US$ 250 mil [R$ 498 mil]. É claro, sempre há derrotistas que não acreditam que as compras levarão à prosperidade universal. Entre esses estava a equipe de limpeza da filial do Goldman Sachs em Londres, onde os bônus foram os mais elevados.Enquanto a firma financeira distribuía presentes de US$ 600 mil em média -que muitas vezes chegaram a milhões-, seus faxineiros pensavam em entrar em greve.Com seu salário, eles atingiriam o bônus médio em 22 anos. A idéia de que o consumo individual promove a economia é antiga. Ela parece intuitivamente óbvia. Sem pessoas que desejem e comprem iPods, não haverá trabalhadores na linha de montagem do iPod e, portanto, não haverá economia. Uma pessoa, hoje esquecida -um autor free-lance que escrevia para o finado "New York Daily Tribune"-, contestou isso. Karl Marx focalizava a produção, e não o consumo.

Sistema vulnerável

Na medida em que o capitalismo tentava minimizar a quantidade de trabalho necessário, Marx notou, ele se mostrava extraordinariamente produtivo; menos trabalhadores produziam mais bens. Mas também se mostrava vulnerável a crises de produção excedente. Enquanto o aparato industrial se torna mais eficiente e exige menos trabalhadores, mina a si mesmo. Afinal, os próprios trabalhadores fazem parte do mercado.Se estiverem desempregados, comprarão pouco ou nada e as mercadorias não serão vendidas.O espectro do excesso de produção assusta a economia moderna, que reage de diversas maneiras: vendendo produtos para novos consumidores (por exemplo, alimentos para bebês para mães que amamentam), vendendo mais produtos para os consumidores existentes (por exemplo, aparelhos de TV maiores para os proprietários de TVs) e vendendo mais produtos para o governo (por exemplo, porta-aviões e jipes para os militares).

A publicidade dirige-se aos primeiros dois mercados e garante que ninguém escape do consumo imperativo. Até as portas de saída levam ao caixa. A publicidade não pode colocar dinheiro no bolso dos compradores, mas pode criar uma necessidade de consumir a partir de inseguranças e desejos. As vendas do enxágüe bucal Listerine dispararam na década de 1920 quando seu fabricante promoveu o termo "halitose" e encorajou todos a pensarem que sofriam de mau hálito crônico.
Benjamin Barber, um teórico político e autor de "Jihad vs. McWorld" [Jihad versus McMundo, Ballantine Books, 432 págs., US$ 15, R$ 30], investe no debate sobre consumo e publicidade em "Consumed" [Consumidos, 416 págs., US$ 26,95, R$ 54].
É um livro ambicioso, que tenta definir um período e delinear formas de resistência que incluem um novo tipo de cidadania global. Um século atrás, o sociólogo alemão Max Weber atribuiu a ascensão do capitalismo a um novo espírito religioso, o espírito protestante de poupança e trabalho duro.

Etos infantilista

Barber, que não é exatamente um tímido, tenta revisar Weber com uma idéia igualmente "provocativa e controversa" -a noção de um "etos infantilista". Mas o que é exatamente o "etos infantilista" que Barber oferece como sua contribuição à vasta literatura sobre o consumo? "A infantilização destina-se a induzir puerilidade nos adultos e a preservar o que há de infantil nas crianças que tentam crescer." Infelizmente, isso não nos leva muito longe. Barber oferece uma série do que ele chama de dualidades que "captam a infantilização": fácil contra difícil, simples contra complexo e rápido contra lento.
"Fácil contra difícil funciona como modelo da maior parte do que distingue a criança do adulto." Temos "fácil de escutar" e "compras facilitadas", que "promovem produtos" sintonizados com o âmbito de interesse e os gostos dos jovens. Mas o coração de Barber não está aí. Ele prefere divagar sobre pensadores políticos e não entender a psicologia da infantilização.
As duplas de Barber parecem questionáveis. "A preferência pelo simples contra o complexo é evidente em terrenos dominados por gostos mais simples -fast-food e filmes idiotas, esportes de espectador e videogames emburrecidos."
Mas isso é infantilização? Parece mais plausível argumentar o contrário. Não há nada "simples" em fast foods e filmes de ação; eles são construídos por adultos com o know-how mais avançado.O gênio do capitalismo transforma o simples e fácil -refeições, relacionamentos, felicidade- em coisas complexas e difíceis; ele "mercadoriza" toda a vida. Com um clique do mouse e um número de cartão de crédito, também oferece prazeres instantâneos. O que antes podia ser feito fora do mercado -por exemplo, jogos e esportes- agora exige dinheiro e compras.

Triunfo do marketing

A "infantilização" pode, na verdade, indicar a morte da criança. A moda e a sexualidade adultas hoje abrangem crianças e pré-adolescentes. Isso não sugere o triunfo da criança, mas o triunfo do marketing adulto.Infantilização, para Barber, é um slogan que ele realmente não analisa. Em vez disso, dedica-se ao que chama de "ideologias afiliadas" da privatização, branding e marketing total, que promovem o hiperconsumismo. Na última parte do livro, Barber esboça "uma maneira moderada e democrática" de resistir ao capitalismo de consumo. Quer restaurar o capitalismo a "seu papel primário" de produtor eficiente e manter o "público democrático" como regulador de "nossos diversos mundos de vida".Mas a fragilidade de suas idéias aparece em suas apresentações em PowerPoint. Ele identifica três tipos de resistência e subversão do consumidor: "Vou discuti-los sob as rubricas crioulização cultural, carnavalização cultural e bloqueio cultural".Com "crioulização", ele quer dizer o esforço de dirigir as marcas do mercado contra o mercado, onde a "mercadorização" serve a grupos ou movimentos heréticos, como o rock hassídico, em que o ultra-ortodoxo Gad Elbaz coloca letras piedosas em ritmos pulsantes. Com "bloqueio", Barber quer dizer táticas derivadas principalmente de Kalle Lasn, fundador da revista "Adbusters".

Nas palavras de Lasn, "os bloqueadores pintam suas "próprias ciclovias, reivindicam as ruas, deturpam anúncios de Calvin Klein e colam adesivos de "gordura" nas bandejas e mesas dos restaurantes McDonald"s".No entanto não seria injusto perguntar-se sobre os limites precisos dessa subversão cultural, dos quais Barber está bem ciente. Assim que apresenta suas formas de resistência cultural, nota que elas são facilmente incorporadas pelo mercado. Uma rede de cafés na Índia que desafia a Starbucks -para Barber, inexplicavelmente, um exemplo de crioulização- se parece muito com uma Starbucks indiana. Os bloqueadores da "Adbusters" lançaram sua própria marca de tênis esportivos, baseada na Nike. O "Unswoosher" não apenas é sindicalizado e "amigo da terra" como vem com um "ponto ideal" vermelho sobre o dedão "para chutar a bunda das corporações".Bonito, mas isso não é apenas mais uma marca da moda?Barber é apenas o último progressista que enlouqueceu com Hollywood. Ele sonha que suas ofertas tímidas são provocações revolucionárias.Filmes como "Politicamente Incorreto", com Warren Beatty, e "Tudo pela Fama", com Hugh Grant, demonstram "a própria capacidade dialética de Hollywood de gerar rebelião e subversão". É mais provável que eles demonstrem a capacidade de pensamento otimista de Barber. As destruições do mercado no pobre Terceiro Mundo também chamam a atenção de Barber -pelo menos por dez páginas.Aqui também ele encontra contramovimentos ou remédios parciais, como a barra de cereais de 500 calorias dos Médicos sem Fronteiras e a idéia do economista Muhammad Yunus, vencedor do Nobel, de microcréditos para os pobres.

Armadilha para macacos

Barber refere-se mais de uma vez a um "método terrivelmente simples de apanhar macacos na África" como uma metáfora para o capitalismo de consumo. Nessa armadilha, uma noz pode ser acessada por meio de um pequeno buraco numa caixa fechada e segura. O buraco é pequeno demais para permitir que a mão do macaco saia, e o macaco não soltará a guloseima.
Para Barber, os consumidores são os macacos na armadilha do capitalismo.Em sua prosa canhestra, isso é puro Barber, mas há outro problema. A armadilha do macaco "infantilista" é um mito. Os macacos não morrem nessas armadilhas e fogem quando os caçadores se aproximam; os consumidores podem ser igualmente inteligentes. Talvez isso não importe, mas pode ilustrar algo da abordagem nada rigorosa de Barber.

RUSSELL JACOBY é professor de história na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, e autor de "O Fim da Utopia" (Record). A íntegra deste texto saiu na "Nation". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

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Comentário:

1) Russel Jacoby é autor de um ácido exame da intelectualidade norte-americana liberal (aqui soaria "de esquerda"). Ele critica sobremodo o jargão "teórico" dos sociólogos, antropólogos, filósofos e quejandos que, nos campi, faz as vezes da "metafísica ruim" execrada pelos francêses, normalmente amigos da escrita clara e distinta, um sinal de polidez científica.

2) Mostra o estraçalhamento do ensino privado e público, em nível universitário, nos EUA e demonstra que as "universidades" para os pobres são acampamentos sem professores, livros, serviços, etc.

3) Demonstra o quanto o preço das tuitions definem gargalos que jogam os de baixo fora dos empregos especializados e com melhor ganho.

4) Outras coisas mais, que passaram batidas pelos jornalistas e acadêmicos de Brazilândia Salve Salve. O título do volume a que me refiro é auto-explicativo: "Dogmatic Wisdom. How the Culture Wars Divert Education and Distract America" (New York, anchor Books/Doubleday1994). Apresentei o livro para editores brasilbambas e saberetes. "Não vende. O autor é da direita norte-americana". Fuck ! É por essas e outras que a mente brasilsectária não se expande, pois seu alimento encontra-se apenas em livros que vendem, e vendem segundo o mercado grosseiramente ideológico.

Note-se, no artigo/resenha editado pelo Caderno Mais, o tom respeitoso com o qual Jacoby cita Marx, embora não seja um "marxista" ou coisa achegada. Aqui, qualquer jornalista semi-alfabetizado (ou semi-analfabeto) arrota, num sorriso idiota, que nada em Marx se salva, tudo é pura matéria ideológica consumida de vez com o totalitarismo soviético. É um discurso provinciano. Sempre, e sempre sempre, quando o tolo jornalista ou acadêmico jornaleiro dizem algo assim sobre qualquer pensador, lido e criticado desde pelo menos o século 19. a sua predileção é dizer que um pensador, estranho às cogitações laudatórias de sua seita, é cachorro morto. Os idiotas da Europa diziam o mesmo de Spinoza, e demais filósofos. E logo surgem (para "destruir" o pensador por eles estigmatizado) das suas bocas ou computadores, nomes de "grandes teóricos" de Xiririca da Serra. E seja Xiririca no Texas ou no Rio de Janeiro, o sabichão é dito mais profundo do que Aristóteles, etc. É a doença comum do "genie de la paroisse" (o gênio da paróquia).

Não por acaso, a mínima busca conduz aos laços mais do que íntimos entre o "grande teórico" e o seu laudador jornalístico. É coisa de seita ou quadrilha organizada. Isto quando o próprio jornalista não se proclama, ele mesmo, "grande teórico" e decreta verdades em cusparadas, sem o mínimo cuidado de investigar os elementos empíricos, lógicos, etc. de seus "argumentos". Admiro muito Paulo Francis. Mas infelizmente seus imitadores, sem a cultura e erudição que o assistia, com perdão da palavra, cagam regras sobre tudo e todos. É um enfado ler as "teses" excretadas em frases dogmáticas, sem nenhum socorro da verificação honesta dos fatos e dos fundamentos lógicos do que é dito.

Volto a Jacoby: ele não é "marxista" ou "weberiano" por citar com respeito aqueles escritores. É apenas honesto. Só os sectários de sempre, nutridos pelo maniqueísmo vulgar, podem dizer que "tudo" num autor é puro erro. Sequer os padres conciliares, no Concílio de Trento, agiam e diziam coisas assim. Mas regredimos para os pequenos cenáculos que disputam o controle das redações, delas tentando expulsar os que pensam de modo diferente do seu.

Esquerda e direita no Brasil, com os seus oráculos, não ultrapassam o nível das seitas. E quanto mais fechada a seita, mais radicalizado em alguns ângulos do real o seu discurso, apresentado como "pensamento". É bom recordar a origem das palavras. "Pensamento" deriva do ato de pesar palavras e discursos, pesar fatos e opiniões, conceitos, etc. "A idéia da pesagem (que é um contrôle, termo de resto criado por Montaigne, ou pelo menos aproveitado literariamente por ele) está já inclusa no próprio vocábulo pensar, de ' ponderare, pondus´. O pensador é o indivíduo que ´pesa´os juízos (...) Je ne compte pas mes emprunts, je les poise". (No bonito livro de Silvia Lima,"Ensaio sobre a Essência do Ensaio", São Paulo, Saraiva & Cia. Ed. 1946).

É por isso que boa parte dos nossos jornalistas pouco eruditos (ler e analisar leva muito tempo, o melhor é fingir que se pretende entrevistar um professor idiota, que nutrirá a reportagem de "idéias"), pouco intelectualizados, pouco honestos no plano cultural, são levianos. Como levianos são os professores que diante deles se curvam. "Leviano" também é palavra originada na imagem da balança noética ou ética, sobretudo entre os romanos, que usavam para designar pessoas sem peso, cuja palavra não era pesada, como essencialmente presas à "levitas". Lembrando a canção : a palavra dos mencionados jornalistas e acadêmicos "voa tão leve, mas tem a vida breve, precisa que haja vento sem parar". E como sopra forte o vento das finanças, dos palácios governamentais, etc. Mangabeira Unger é nome de uma legião inumerável, inefável, sublime na sua certeza de que seus vocábulos nunca são pesados pelos que passeiam em seus textos.

E basta por hoje, porque a leitura dos jornais deste domingo deixa na boca de quem pensa um travo amargo.

Roberto Romano

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