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quarta-feira, maio 02, 2007

BENTO XVI, O ESTADISTA.





Correio Popular de Campinas. 2/5/2007



BENTO XVI, O ESTADISTA

Roberto Romano


A visita de Bento XVI traz muitos debates entre os católicos. Ela suscita análises dos problemas entre Igreja e poderes civis. A Teologia da Libertação acentuou o nexo entre bispos e povo, a opção preferencial pelos pobres. Durante um tempo breve, tal programa foi hegemônico na pastoral. Hoje, mudou muita coisa no discurso dos pastores. Teria a referida atitude caído no vazio? O Sumo Pontífice tornou-se alheio aos “negativamente privilegiados”? Esta última fórmula vem de Max Weber, o maior sociólogo moderno. Alguns revisores pouco afeitos à terminologia científica, em tempos de antanho, cortaram de meus artigos tal expressão, para eles muito estranha. Mas ela é a mais exata e rigorosa... Num coletivo hierarquizado (a noção de hierarquia é antiga como o ensino de Dionísio, o Pseudo-Areopagita) as decisões do Sumo Pontífice definem-se pela prudência. Gustavo Gutierrez, o idealizador da teologia da libertação, fazia a pergunta grave: “Igreja e luta de classes são compatíveis?”. Sua honestidade intelectual não aceitou respostas positivas sem base empírica e lógica. Muitos ideólogos “progressistas”, responderam afirmativamente sem base em análises.

Quem notou a concentração do poder religioso em Roma, acelerada no final do pontificado de Paulo VI, não foi pego de surpresa. A Teologia da Libertação perdeu força porque deixou de operar como Gutierrez e usou esquemas mentais endurecidos, a exemplo do marxismo apologético, o qual, aliás, era visto por aquela corrente teológica como simples “instrumento sócio-analítico”, e não como filosofia com alvos autônomos diante do religioso. O trato com os pobres é estratégico na pastoral. Mas para os dirigentes do Estado Vaticano, é mais do que relevante acertar o seu relacionamento com o Estado civil e laico.

Em “Brasil, Igreja contra Estado”, avanço o seguinte: enquanto a Igreja for uma instituição mundial, burocrática, hierarquizada e conduzida de modo monárquico, ela e o Estado sempre estarão em aberta ou velada contradição. O mundo católico sintetiza e concilia culturas diferentes: judaica, romana, grega. No culto, nas formas jurídicas e pastorais, são unidos elementos opostos, surgindo significados novos. A Igreja opera com os cinco sentidos: olhos (pintura, arquitetura, teatro), ouvidos (poesia, música, retórica), tato (em todas as cerimônias, as mãos ocupam lugar importante), gosto (nos sacramentos, sobretudo na comunhão, Deus alimenta os fiéis), olfato (o incenso é importante). Ela “fala” com os leigos e com o mundo exterior de maneiras múltiplas. Já existem pastorais para a midia. Os hierarcas usam as ciências sociais. Como diz E. Canetti, perto da Igreja, grandes estadistas são diletantes.

Qual é o lugar da religião católica no espaço público? Após as Luzes, com o romantismo, o sagrado retornou à vida oficial. Em Paris, o Sacré Coeur de Jesus, e no Rio o Cristo Redentor, consagram a França e o Brasil (outros países entram no rol, como a Bélgica, o Equador, etc.) à soberania eclesiástica. Com o aumento das culturas urbanas alheias à religião, os hierarcas buscam novas formas de relacionamento com os poderes civis mundiais. Para tal fim, precisaram de um papa frio, capaz de pensar em termos diplomáticos e políticos. E foi eleito Bento XVI. Quase sempre, após um ou dois papas pastorais e menos intelectualizados, no governo da Igreja, vem um pontífice intelectual. Como ela procura recolher o homem todo e todos os homens, não pode prescindir dos dois aspectos. Ela sabe dosar os ingredientes. Sempre que um pontificado mergulha na pastoral, conquista muitas pessoas e sociedades, pobres especialmente. Mas é preciso organizar o todo eclesiástico, para que as novas presenças não quebrem o equilíbrio da instituição.

Na Igreja nada é feito de afogadilho. “Não existe procissão correndo”(Canetti). Este aristocratismo da ação permite à Igreja andar no seu ritmo, e não no ritmo dos seus adversários. Só esta atitude já representa para ela um ganho estratégico. Se João XXIII foi aberto aos pobres e aos estadistas, Bento XVI acerta o passo com estadistas. Vejamos como opera o governo Lula nesta batalha diplomática e doutrinária. Pois se algo falta no Brasil, certamente é estadista...



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