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sexta-feira, maio 04, 2007

E PARA MOSTRAR QUE O GESTO ADULADOR E CULTURA PETISTA, SEGUE ARTIGO MEU DE 2004

Cuidado com os beijos, José Dirceu! (Correio Popular - Opinião - 2/11/2004)

Roberto Romano

O “bacia mano” é importante nos movimentos mafiosos. O dono dos dinheiros e das vidas, o “padrinho”, tem as mãos beijadas em sinal de respeito e obediência. Tal gesto integra a lista dos sinais conhecidos no mundo e designa o que Norberto Bobbio invectiva como o contrário do Estado democrático. A norma desse último é a publicidade. A máfia, no entanto, age no segredo e a lei do silêncio, a “ommerta” nela impera. Um seu membro apanhado pela polícia, silente, deixa-se morrer ou encarcerar. Como toda regra, existem exceções que arruinam o pacto tenebroso. Dizem alguns comentadores que o silêncio dos mafiosos distorce antigos costumes iniciados pela seita pitagórica. Para que um neófito fosse confirmado naquele cenáculo, ele precisaria passar 10 anos no mais duro silêncio, período em que exercitava a arte de guardar os “arcana” do movimento.

Beijar a mão designa respeito ou cumplicidade. Nos grupos ilegais, o gesto mostra alienação intelectual e volitiva, porque sinaliza inferioridade ou cortejo. Se a mão beijada por um homem é masculina, temos a submissão do beijador; se feminina, temos um galanteio ou homenagem ao gênero ou à idade. O beijo integra o universo dos gestos equívocos. Judas é o paradigma. Raramente um beijo só denota intentos, na maioria das vezes ele trai polissemias insuportáveis. O “beijoqueiro”, figura conhecida no Brasil, aplica um “selinho” inocente nas vítimas. Jamais alguém suspeitaria que ele se tornaria, assim, um instrumento útil nas mãos dos beijados. Beijos, beijos. É preciso escrever a história moral que neles se resume.

Mas urge, também, que as autoridades públicas tenham cuidado quando empregam um gesto tão perigoso. Como ele significa submissão, governantes não têm o direito de brincar em ofício, beijando mãos de particulares. Em termos éticos e simbólicos, trata-se de um desastre causado pela imprudência. Ninguém é impune se renúncia aos próprios lábios. No diálogo satírico O Sobrinho de Rameau, o personagem genial, mas sem valor, distingue, com lógica firme, dois tipos de beijo. Cito-o em francês para não ferir suscetibilidades (na tradução excelente do professor J. Guinsburg, todas as palavras são ditas em claro vernáculo): “…il y a baiser le cul au simple, et baiser le cul au figuré…”. Um dependente dos governantes lhes beija o traseiro física e também de modo figurado. Em ambos os sentidos, o ato é abjeto.

Os palácios estão abarrotados de aduladores que roçam com os lábios as poderosas partes baixas. Quanto mais tirânicos os dirigentes, mais beijos recebem. Enquanto isso, as línguas e os narizes dos aduladores são tingidos de marrom. Existe a expressão inglesa que designa tais pessoas: um indivíduo “brown-nosing”, conforme dicionário bem humorado, domina a “Obsequiousness, the art of being overly nice to someone to get something from them”. Retoma outro léxico anglo-saxão: brown-nosing é o “boot-licking, sycophantic, palaver, flatterer”. Um tratado ético importante foi escrito por Plutarco e serviu a estadistas e sábios desde a época helenística. Refiro-me ao excelente A maneira de distinguir o amigo do adulador. Plutarco cita o tirano Dionisio de Siracusa. Velho e quase cego, ele batia nos móveis, paredes etc. Os aduladores assumiram a mesma posição, dando-se choques mútuos para mimetizar o governante em declínio. Um adulador refinado, diz ainda o filósofo, conhece técnicas eficazes para chaleirar os poderosos. No teatro, ele chega bem cedo e guarda os melhores lugares. Quando a sua vítima chega, ele lhe entrega as poltronas, silenciosamente: foi realizado o “favor” a ser pago mais tarde. E assim por diante.

Dos gestos mais significativos que conotam subserviência, beijar as mãos de alguém é o mais nocivo para a dignidade de quem beija. É por isso que sugiro ao ministro José Dirceu - no debate da TV Globo ele beijou ostensivamente as mãos de Delúbio Soares - muita cautela. Não existe brincadeira inocente neste terreno. O ministro desejou manifestar respeito pelos cofres do partido, ou pela pessoa do amealhador de tostões e milhões para a sua agremiação. Delúbio Soares não é autoridade. Sua preeminência é tão grande que o ministro, nunca surpreendido ao beijar as mãos do presidente, confessa com aquele gesto a verdadeira fonte do poder petista? Prudência e respeito fariam bem ao ministro, que não deve debochar dos cidadãos brasileiros e asusmir atitudes mais decorosas no exercício do cargo.


Sérgio Lima/Folha Imagem

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